Introdução
O Pentecostalismo, emergido nas fronteiras sociorreligiosas do início do século XX, é frequentemente analisado através de suas rupturas com os modelos protestantes históricos, enfatizando-se a experiência carismática, a espontaneidade litúrgica e a restauração dos dons do Espírito Santo.
No entanto, uma análise acadêmica mais aprofundada revela que, em sua busca por um cristianismo primitivo e apostólico, o movimento pentecostal não apenas resgatou elementos do judaísmo antigo, mas também engendrou complexos processos de apropriação, ressignificação e até mesmo "rejudaização" de suas práticas e cosmovisões.
Esta dissertação argumenta que a relação do Pentecostalismo com o Judaísmo transcende a mera herança textual partilhada com o Protestantismo em geral, manifestando-se numa simbologia, numa pragmática ritual e numa teologia da história que, de forma consciente ou não, estabelecem um diálogo dinâmico e por vezes paradoxal com a tradição judaica.
1. A Reimaginação do Sagrado: Espaço, Tempo e Presença Divina
Um dos elementos mais significativos dessa interface é a reconfiguração do espaço e do tempo sagrados. Diferente do Protestantismo histórico, que enfatizou a centralidade do púlpito, o Pentecostalismo, em sua prática cultual, frequentemente reconstrói uma concepção de espaço reminiscente do Templo de Jerusalém.
O fenômeno da "adoração extravagante" – com danças, rodopios, bandeiras e um senso de celebração corporal total – encontra um paralelo impressionante com as descrições da adoração davídica no Antigo Testamento (e.g., 2 Samuel 6:14-16). O culto deixa de ser apenas um ato cognitivo ou auditivo para se tornar uma experiência cinestésica e comunitária de celebração, análoga às festas de peregrinação judaicas.
Paralelamente, a forte ênfase na presença imanente de Deus no culto, materializada através de manifestações como o "fogo pentecostal", o "vento impetuoso" e a sensação tangível do Espírito Santo, pode ser interpretada como uma releitura cristológica da Shekinah – a glória presencial de Deus que enchia o Tabernáculo e o Templo (Êxodo 40:34-35).
No Pentecostalismo, esta presença não está confinada a um Santo dos Santos físico, mas se manifesta de forma dinâmica e imprevisível sobre a comunidade reunida, reafirmando um Deus que habita no meio do seu povo, um princípio central na teologia do Templo.
2. A Pragmática do Sagrado: Profetismo, Cura e Batalha Espiritual
fervorosa no Pentecostalismo refletem uma cosmovisão onde o mundo espiritual é imediatamente acessível e influenciável pela ação humana, uma perspectiva presente em toda a narrativa hebraica.
Além disso, a ênfase na cura divina e no exorcismo (ou "batalha espiritual") estabelece uma conexão com o mundo do Judaísmo do Segundo Templo e do ministério de Jesus, que era profundamente enraizado nesse contexto. A luta contra demônios e forças espirituais adversárias reflete uma cosmologia dualista similar à encontrada nos manuscritos do Mar Morto e na literatura apocalíptica judaica, onde a história é palco de um conflito cósmico entre o bem e o mal. A oração de decreto e a autoridade sobre as "potestades do ar" no Pentecostalismo são, neste sentido, uma releitura de conceitos judaicos de impureza e restauração, reinterpretados através da lente da vitória de Cristo.
3. A Teologia da História e a "Rejudaização" Contemporânea
Um dos desenvolvimentos mais fascinantes na interface Pentecostalismo-Judaísmo é a evolução da escatologia e da teologia da história. O Pentecostalismo clássico herdou do Dispensacionalismo, uma teologia protestante do século XIX, uma visão filosófica e filosófica do povo judeu.
Nesta visão, Israel nacional é reconhecido como um ator central nos eventos escatológicos, e o retorno dos judeus à Terra Prometida é visto como o cumprimento de profecias bíblicas. Isso levou a um forte apoio sionista por parte de muitas denominações pentecostais, um fenômeno paradoxal considerando a histórica teologia da substituição que marcou o cristianismo.
Mais recentemente, um movimento dentro do Pentecostalismo e do Carismatismo, conhecido como "Movimento das Raízes Hebraicas" ou "Judeus Messiânicos", levou essa aproximação a um novo patamar.
Este movimento busca ativamente restaurar práticas judaicas como a guarda do Shabbat, as festas bíblicas (Páscoa, Pentecostes, Tabernáculos), e as leis dietéticas, argumentando que a fé em Yeshua (Jesus) não anula, mas cumpre e restaura o significado pleno da Torá.
Esta é uma forma explícita de "rejudaização" que desafia as fronteiras tradicionais entre o cristianismo e o judaísmo, criando uma identidade híbrida que se apropria de símbolos e rituais judaicos dentro de uma estrutura cristológica fundamental.
Considerações Finais: Apropriação versus Continuidade
Em conclusão, os elementos do Judaísmo no Pentecostalismo não são meros vestígios arqueológicos de uma fé ancestral, mas constituem uma presença viva e ativa que molda sua identidade, sua liturgia e sua visão de mundo.
Esta relação é dialética: por um lado, há uma apropriação seletiva de símbolos e práticas (dança, profecia, festas) que são ressignificados à luz da experiência do Espírito Santo e da figura de Jesus. Por outro, há uma ressonância experiencial com uma cosmovisão judaica que valoriza a imanência de Deus, a ação no mundo e a centralidade da comunidade.
Contudo, é crucial problematizar essa relação. A apropriação nem sempre é feita com um entendimento profundo do significado original desses elementos dentro do Judaísmo rabínico vivo.
O risco do supersessionismo (a teologia da substituição) persiste, mesmo em contextos de apoio a Israel, quando a existência judaica é vista principalmente como um trampolim para o cumprimento de profecias cristãs. Portanto, os elementos do Judaísmo no Pentecostalismo representam um fenômeno complexo de mimetismo religioso, reinterpretação teológica e busca por autenticidade espiritual.
Eles demonstram que, na tentativa de reviver o "cristianismo do primeiro século", o Pentecostalismo inevitavelmente se depara com a sua matriz judaica, engajando-se num diálogo contínuo que enriquece e complica a sua trajetória histórica e teológica.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.
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