
A Igreja, enquanto instituição milenar e corpo de Cristo na Terra, enfrenta um dos seus maiores desafios contemporâneos: a erosão da sua credibilidade. Diante de uma série de escândalos, que vão desde abusos sexuais e financeiros até a instrumentalização política do púlpito, a confiança da sociedade e de seus próprios membros tem sido severamente abalada. Essa crise não é apenas de imagem, mas de identidade eclesiástica.
O presente artigo busca analisar o papel fundamental da eclesiologia, o estudo da natureza e da missão da Igreja, na promoção de uma cultura de transparência e responsabilização como caminho para a restauração. Argumenta-se que uma eclesiologia renovada, fundamentada na teologia da comunidade, da profecia e do serviço, é a única via capaz de reverter a atual crise e reacender a chama da esperança.
A crise de credibilidade da Igreja contemporânea não pode ser dissociada de uma eclesiologia institucionalista que, por vezes, priorizou a preservação da estrutura em detrimento da ética e da verdade. A ênfase excessiva na hierarquia e na autoridade clerical, em detrimento do sacerdócio de todos os crentes, criou um ambiente propício para a ocultação de crimes e a falta de responsabilização. O medo do escândalo, que poderia manchar a "honra" da instituição, muitas vezes superou a urgência de proteger as vítimas e de buscar a justiça. Em tal cenário, a Igreja-organização substituiu a Igreja-corpo, transformando o sagrado em um mero aparelho burocrático.
Para reverter esse quadro, é imperativo que a Igreja retome uma eclesiologia da comunidade. Esta perspectiva teológica, que remonta aos primórdios do cristianismo, entende a Igreja não como uma pirâmide de poder, mas como uma família de fé, onde cada membro é corresponsável pelo bem-estar e pela santidade do todo.
Nessa visão, a transparência não é apenas uma estratégia gerencial, mas uma expressão do amor e da comunhão fraterna. A prestação de contas, tanto financeira quanto moral, torna-se um dever mútuo e não uma imposição de fora. A vulnerabilidade de um é a vulnerabilidade de todos, e o sofrimento de um membro afeta o corpo inteiro.
Além disso, a recuperação da credibilidade passa pela redescoberta da eclesiologia profética. A Igreja é chamada a ser a "voz dos que não têm voz" e a se posicionar contra as injustiças, inclusive as que se manifestam dentro de suas próprias paredes. O profeta bíblico, muitas vezes incompreendido e rejeitado, é a figura que expõe o pecado e convoca à conversão. Uma eclesiologia profética exige que a Igreja denuncie o mal, comece por si mesma, e que se posicione firmemente ao lado das vítimas, e não dos perpetradores. Isso implica a implementação de mecanismos robustos de denúncia, investigação e punição, sem distinção de hierarquia ou posição.
Por fim, a crise de credibilidade é um chamado urgente para a prática de uma eclesiologia do serviço. Cristo, o fundador da Igreja, lavou os pés de seus discípulos, oferecendo o exemplo máximo de liderança servidora. A autoridade eclesiástica, nessa ótica, não é para ser exercida como domínio, mas como cuidado e proteção. A recuperação da confiança só será possível quando a liderança eclesiástica assumir, de fato, a sua responsabilidade de servir, proteger e curar as ovelhas, especialmente as mais vulneráveis. O serviço é o antídoto para a arrogância e o poder que corroem a credibilidade.
Em conclusão, a crise de credibilidade da Igreja não será superada por campanhas de marketing ou por meras reformas superficiais. A verdadeira restauração reside no retorno a uma eclesiologia bíblica e integral. Ao resgatar a visão da Igreja como uma comunidade profética e servidora, a instituição pode não apenas enfrentar seus erros passados, mas também reconstruir a confiança, mostrando à sociedade que a sua identidade reside não em estruturas de poder, mas na busca incansável pela verdade, pela justiça e pelo amor. A crise, portanto, é uma oportunidade para a Igreja ser, de fato, aquilo que ela sempre foi chamada a ser: sinal de esperança e instrumento de redenção no mundo.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor, possui Licenciatura em Letras Português-Inglês (UNICV, 2024) e bacharelado em Teologia (PUC MINAS, 2013). Pós-graduado em Docência em Letras e Práticas Pedagógicas (FACULESTE, 2023). Mestre em Teologia (FAJE, 2015). Atualmente é colunista do Portal Guia-me, professor de Língua Portuguesa no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio e de Língua Inglesa no Ensino Fundamental (ll) da SEE-MG, professor de Teologia no IETEB e professor de Português Instrumental do IE São Camilo. Escreveu dois livros, "Curso de Teologia: Vida com Propósito" (AMOB, 2023) e "Novo Curso de Teologia: Vida com Propósito (IETEB, 2025). Além de possuir mais de 20 anos de experiência na ministração da Palavra. É membro da Assembleia de Deus em Belo Horizonte (desde sempre), congrega no Templo Central.
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
Leia o artigo anterior: O Reino de Deus não é uma democracia