Com raízes de dois milênios, a presença cristã na Síria sofreu uma redução alarmante: 80% desde 2011, segundo relatório divulgado pela organização “Oeuvre d’Orient” (Obra do Oriente, em português).
Essa tradição remonta aos primeiros séculos do Cristianismo. A região é considerada um dos berços da fé cristã, mencionada no Novo Testamento como parte das rotas missionárias dos apóstolos.
Cidades como Antioquia, hoje no território sírio, foram centros fundamentais para a difusão da mensagem cristã e para a formação das primeiras comunidades.
Essa longa história confere à presença cristã na Síria um valor cultural e espiritual único, tornando sua redução atual um marco preocupante para a diversidade religiosa e para a preservação de um patrimônio histórico milenar.
Esse cenário histórico contrasta de forma dramática com a realidade atual: restam hoje cerca de 300 a 400 mil cristãos, em sua maioria idosos, o que indica risco de desaparecimento da comunidade no país.
Prisões, torturas e abusos
A violência atingiu todos os sírios, mas a comunidade cristã parece ter sido a mais afetada. Bairros cristãos como Midan, em Aleppo, situados na linha de frente, foram especialmente vulneráveis.
Junto a outras minorias, sofreram nas mãos de grupos terroristas islâmicos.
Vincent Gélot, gerente de projetos da Oeuvre d’Orient na Síria e no Líbano, relata o drama vivido em Raqqa, onde o Estado Islâmico impôs taxas aos cristãos e praticou prisões arbitrárias, tortura e outros abusos.
Ele também menciona, por exemplo, o sequestro de 230 civis, incluindo cerca de 60 cristãos siríacos, 45 mulheres e 19 crianças em Al-Qaryatayn, em 2015.
O patrimônio cristão também sofreu grandes perdas. Durante a guerra, locais de culto foram danificados e alguns foram alvos deliberados.
Êxodo cristão
O êxodo foi impulsionado por guerra civil, perseguições religiosas, sanções internacionais, serviço militar obrigatório e o terremoto de 2023. Ataques contra igrejas e sequestros por grupos extremistas agravaram a situação.
Em Deir Ezzor, hoje 75% destruída, restam apenas quatro cristãos – um número que contrasta com os 7 mil antes da guerra iniciada em 2011.
O conflito já tirou mais de 520 mil vidas, gerou 7 milhões de refugiados e deslocou outros 6 milhões. Dezenas de milhares continuam desaparecidos.
Embora tenha se apresentado como protetor das minorias religiosas, o regime de Bashar al-Assad não conseguiu evitar o êxodo cristão durante a guerra civil.
Cenário de guerra na Síria. (Foto: Open Doors)
A prolongada instabilidade, somada à repressão política e às sanções internacionais contra o governo, agravou a crise econômica e social, tornando a permanência das comunidades cristãs cada vez mais difícil. Além disso, a falta de garantias de segurança e liberdade religiosa em áreas sob controle estatal contribuiu para que muitos buscassem refúgio no exterior.
Rede de apoio
Embora as estatísticas sejam limitadas em um país que sai de 14 anos de guerra, dados fornecidos pelas próprias comunidades indicam que cerca de 2 milhões de pessoas são beneficiadas pela rede de associações cristãs, segundo a organização.
No campo humanitário e social, incluindo o apoio a pessoas com deficiência e a promoção da reconciliação, os cristãos atuam por meio de uma ampla rede de organizações.
Muitas delas surgiram durante a guerra, destacou Gélot, em videoconferência.
A Oeuvre d’Orient, em parceria com o Hope Center Syria, ressalta que cerca de 117 mil sírios de diferentes religiões recebem atendimento todos os anos em quatro hospitais cristãos localizados em Damasco e Aleppo, considerados “entre os melhores do país pela qualidade e capacidade de serviço”, segundo Gélot.
Educar as crianças
A educação é “uma grande prioridade”. As Igrejas estão profundamente envolvidas na educação, administrando 57 escolas que educam 30 mil alunos em todo o país.
Crianças de diferentes religiões estão matriculadas, promovendo o aprendizado de valores de paz e tolerância, além das disciplinas tradicionais.
Estão em curso negociações para recuperar 30 das 67 escolas que foram confiscadas pelo Partido Baath.
Em áreas devastadas pela guerra, como Deir Ezzor e Suwayda, recuperar uma escola seria crucial para “reacender a atividade missionária” e “restabelecer conexões entre a pequena minoria cristã local e o restante da população”.
O relatório alerta para sinais de islamização e discriminação nos materiais escolares, pedindo mecanismos de justiça e fundos internacionais para garantir diversidade religiosa.
Um decreto ministerial, aplicável ao ano letivo atual, propõe uma reinterpretação da história síria; “os nomes de deuses que remontam ao período pré-islâmico foram removidos”, relata seu chefe de missão no país.
Declínio econômico e demográfico brutal
A comunidade cristã ainda paga o preço da guerra ainda hoje.
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Cristão em oração. (Foto: Open Doors)
Segundo Gélot, eles perderam propriedades, terras e sofreram um declínio social.
“Atualmente, 90% da população síria vive abaixo da linha da pobreza, e os cristãos fazem parte dessa população empobrecida. É também uma comunidade que sofreu um declínio massivo. 80% da comunidade cristã, que estava presente há 2.000 anos, desapareceu em apenas quatorze anos. É brutal”, relata.
Em Aleppo, apenas um sexto dos cristãos que viviam na cidade antes da guerra permanece.
Mas “entre os 20% de cristãos que permanecem, estamos lidando com uma comunidade bastante idosa. Mais de 50% dos membros dessa comunidade têm mais de 50 anos”.
“Portanto, estamos diante de uma pirâmide etária invertida, com um declínio acentuado no número de jovens em relação aos idosos”, explica o chefe da missão da Oeuvre d’Orient na Síria.
Ataques a igrejas
Concluído em setembro, o relatório também aborda os primeiros meses sob as novas autoridades sírias.
O país ganhou fôlego econômico com o fim das sanções internacionais, mas antigas divisões voltaram à tona após 54 anos de ditadura da família Assad e anos de guerra.
A violência comunitária explodiu em março, no litoral, contra os alauítas e, em junho, contra os cristãos, durante o ataque à igreja de Mar Elias.
Ataque terrorista deixou pelo menos 20 mortos em igreja na Síria. (Foto: Captura de tela/YouTube/Telly Guru)
“Nunca durante a guerra uma igreja havia sido atacada durante a Missa”, destacou Vincent Gélot, que, para enfatizar a raridade desse tipo de violência, lembrou os atentados contra igrejas ortodoxas coptas e seus fiéis no Egito em 2016 e 2017, além do ataque à Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Bagdá, em 2010.
Mais recentemente, a comunidade drusa também passou a ser alvo de ataques, com populações deslocadas. De Homs a Latakia, passando por Hama, foram registrados problemas de segurança.
Mulheres alauítas chegaram a ser sequestradas por grupos isolados, e, segundo relatos, “as novas autoridades permitiram que isso acontecesse”.
Atualmente, há um diálogo aberto entre as Igrejas e o presidente de transição em Damasco. Reuniões já foram realizadas com o presidente Al-Sharh, nas quais patriarcas e bispos apresentaram suas perspectivas sobre “o que está funcionando e o que não está”.