NYT
Casos desafiam obstáculos transfronteiriços e chegam às cortes europeias, mas as decisões até o momento são limitadas
Quando Kirsi Bestetti, de 1 ano de idade, caiu e cortou o lábio na casa dos avós no verão passado, sua mãe, Elisa Bestetti, correu ao pronto socorro, assustada com todo aquele sangue. Quando chegou lá, ela não sabia se a equipe do hospital iria aceitá-la como mãe de Kirsi.
Bestetti é italiana, mas a loiríssima Kirsi é finlandesa como sua mãe biológica, Emmi Pihlajaniemi. As duas mulheres estão casadas em todos os sentidos, menos no papel, há cinco anos na Finlândia e cada uma delas deu à luz uma filha, que foi legalmente adotada na Finlândia pela outra parceira.
Entretanto, a Itália não permite que uma criança tenha duas mães. Casais do mesmo sexo na Itália não podem se casar, formalizar uma união estável, adotar filhos ou se beneficiar de técnicas de reprodução assistida. Dentro da União Europeia, essas questões de legislação familiar continuam a ser domínio exclusivo de cada um dos 27 países do bloco, cada um com sua própria história, com suas tradições culturais e legais.
Em um continente tão integrado, que se orgulha de suas fronteiras abertas e do mercado único – bem como de ser um dos pioneiros na proibição da discriminação baseada na orientação sexual, chegando até mesmo a eleger políticos homossexuais para cargos importantes – as diferenças se tornam mais do que simbólicas. À medida que as pessoas mudam de país em função do trabalho, dos relacionamentos ou simplesmente das férias, essas diferenças estão levando a um número cada vez maior de dificuldades práticas em todas as áreas, como o setor fiscal, os direitos de paternidade e as heranças.
"É um pouco como assar um bolo e não querer que ninguém o coma\", afirmou Michael Cashman, defensor dos direitos dos gays e membro do Parlamento Europeu pela Grã-Bretanha. \"Mas se acreditamos na liberdade de movimentação – em uma \'Europa sem fronteiras\' –, nós precisamos enfrentar este problema: as desigualdades vivenciadas pelas pessoas em função das opiniões de alguém.\" No caso do Kirsi, o hospital acabou fazendo o tratamento e o corte no lábio não foi nada grave. Um ano depois, não resta sequer uma cicatriz. Mas as preocupações sobre a situação da família aumentam quando elas saem da Finlândia.
"Eu não sei se viajaria sozinha com a Kirsi\", afirmou Bestetti, que contou a história enquanto Kirsi brincava no colo de sua outra mãe, sob a sombra do celeiro no sítio da família Bestetti, próximo à Bolonha, na Itália. \"O Estado finlandês reconhece que eu sou mãe dela, mas aqui eu não sou nada.\"
A situação em relação ao casamento é parecida com a miscelânea de leis estaduais nos Estados Unidos. Entretanto, uma diferença significativa é a Lei de Defesa do Casamento, de 1996, que impede que o governo federal reconheça o casamento entre pessoas do mesmo sexo e isenta os Estados que não aceitam o casamento entre pessoas do mesmo sexo de reconhecer os casamentos realizados nos poucos estados que o fazem. (No próximo trimestre, a Suprema Corte deve julgar a inconstitucionalidade de parte da lei, que exige que o governo federal negue benefícios para casais compostos por pessoas do mesmo sexo.)
Falta de consenso
Na Europa, alguns casos que desafiam os obstáculos transfronteiriços chegaram às cortes europeias, mas as decisões foram limitadas até o momento. Observadores afirmam que os juízes, escolhidos em cada um dos Estados-membros, têm plena consciência da falta de consenso.
A Comissão Europeia é a guardiã oficial dos tratados da União Europeia e tem buscado formas de facilitar a vida das pessoas que atravessam fronteiras. Entretanto, a proposta ainda espera aprovação, embora a Comissão esteja estudando as melhores formas de facilitar a livre circulação dos documentos de estado civil, incluindo certidões de nascimento, casamento e óbito, há quase dois anos. E quando a proposta for à votação no final desse ano, o plano pode não incluir o casamento.
"Por enquanto, eu acredito que seja importante dar um passo de cada vez\", afirmou Viviane Reding, comissária europeia da justiça, em uma entrevista por e-mail.
Os oponentes argumentam que qualquer tentativa de exigir que os países reconheçam as certidões de casamento entre pessoas do mesmo sexo emitidas por outro Estado-membro exigiria que eles introduzissem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quer quisessem ou não.
"Uma aplicação geral da regra de reconhecimento mútuo dos documentos de estado civil resultaria em uma situação na qual as escolas políticas e sociais de alguns Estados-membros seriam impostas a todos os outros\", argumentou o CARE for Europe, um grupo de lobistas cristãos, em um comentário enviado à Comissão, ecoando as vozes de inúmeros oponentes.
Portanto, casais e famílias compostas por pessoas do mesmo sexo estão lutando suas próprias batalhas – frequentemente com grandes custos.
Brad Brubaker, nascido em Ohio, conheceu seu parceiro inglês, Paul Feakes, na Califórnia em 1995. Brubaker se mudou para Londres e recebeu a cidadania britânica. Eles formalizaram sua união estável, que, a não ser pelo nome, é idêntica ao casamento. Três anos mais tarde eles se mudaram para a Itália e decidiram abrir uma galeria de arte na cidade de Pietrasanta, no litoral da Toscana.
A Itália não reconheceu sua união. Diferentemente do tratamento normal dado às pessoas casadas que trabalham juntas, eles foram forçados a registrar a galeria apenas no nome de Brubaker, ao passo que Feakes teve de ser registrado como funcionário – com um contrato, um holerite e todos os custos burocráticos envolvidos.
Brubaker e Feakes preferiram não ir a um tribunal. Outras pessoas decidiram enfrentar a justiça e obtiveram resultados variados.
Tomasz Szypula, um polonês de 32 anos, conheceu seu parceiro espanhol, Jose Antonio, em 2002, quando ambos estudavam na cidade de Cracóvia, na Polônia. Mais tarde, eles se mudaram para Varsóvia e compraram um apartamento juntos. Em 2010, cinco anos depois que a Espanha legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, eles decidiram ir à cidade natal de Antonio, próxima a Alicante, para se casarem.
"Eu acredito que o casamento seja um tipo de afirmação – você afirma que estará com seu parceiro na saúde e na doença\", afirmou Szypula. \"E esse é o tipo de coisa que você faz pelos outros, por sua família, amigos e vizinhos.\"
Entretanto, dois anos depois eles ainda estão solteiros. Quando as autoridades polonesas viram um nome de homem como o futuro marido nos documentos de Szypula, elas se negaram a emitir os certificados que confirmam que ele pode se casar.
A Constituição polonesa, adotada em 1997, define o casamento como a união de um homem com uma mulher e os funcionários do governo polonês argumentaram que essa é uma \"condição essencial\" para a emissão dos certificados. Até o momento, os tribunais poloneses concordaram e uma decisão a respeito do recurso feito pelo casal deve sair no segundo semestre.
"Esse não é apenas um caso jurídico; essa é uma questão política\", afirmou Szypula. \"Os juízes fazem o que podem para atrasar a decisão.\"
A não ser pela Itália e por Malta – onde a influência do Vaticano é grande –, além da Grécia e do Chipre, a divisão na União Europeia se dá basicamente entre a parte ocidental mais liberal e os conservadores países do antigo bloco comunista, no parte oriental, afirmou Robert Wintemute, professor de direitos humanos no King\'s College de Londres.
Tendência
A Dinamarca, que introduziu a união estável em 1989, se tornou em junho o mais novo membro da União Europeia a tornar \"neutras\" as leis que regem o casamento, juntando-se à Holanda, à Bélgica, à Espanha, à Suécia e a Portugal. Dez outros países do bloco permitem algum tipo de registro de parceria ou união civil. Entre eles, a França, que possui um novo governo socialista, anunciou em julho sua intenção de conceder direitos completos de casamento e adoção até o ano que vem. Inglaterra, Luxemburgo e Finlândia discutem fazer o mesmo.
Sobram, portanto, 11 membros da União Europeia que não reconhecem o casamento homossexual, nem a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Polônia, Lituânia e Bulgária proíbem esse tipo de união em sua constituição. Em vista da falta de segurança legal, Bestetti afirmou que prefere viver em Helsinki, onde a vida com Kirsi e sua irmã de 4 anos, Irma, é mais normal. Mas ela e Pihlajaniemi vêm ao pequeno sítio aqui em Castel Maggiore algumas vezes por ano para visitar a família e os amigos. Elas estão esperando seu terceiro filho, um menino, para meados de agosto, e querem um nome que soe bem em finlandês e em italiano.
Ainda assim, elas não sabem como irão explicar para seus filhos que eles têm duas mães em um país, e apenas uma em outro, ou porque alguns de seus parentes mais velhos na Itália ainda se referem a Pihlajaniemi como a \"tia\" das meninas.
"Eu não sei o que eles irão pensar\", afirmou Pihlajaniemi. \"Para as crianças, essa é realmente uma situação absurda.\"