“O gênero humano não pode suportar muita realidade”, escreveu T.S. Eliot num de seus poemas. Se ainda fosse vivo, ficaria impressionado com a realidade de sua poesia. O nível de estresse entre as gentes beira o insustentável. Os acontecimentos dos últimos dias mexeu com opiniões, preferências, ideologias, crenças, valores, esperanças.
A comoção em escala global foi marcada pelo ataque terrorista ao jornal humorístico Charlie Hebdo, conhecido por suas charges debochadas em relação as principais correntes de fé, pelo menos aquelas classificadas como monoteístas: cristianismo, judaísmo, islamismo. Numa pancada só 12 pessoas morreram vítimas do ataque a redação do Charlie. Na sequência, na mesma França, um mercado judeu também foi atacado. Aí, o que se viu, e que chamou a atenção mundial, foram os milhões de franceses nas ruas protestando contra a barbárie do terrorismo.
Dentre os protestos, se espalhou pela internet dois gritos de protesto: “Eu sou Charlie” e “Eu não sou Charlie”. Se eu fosse obrigado a escolher um dos dois, seria “Eu não sou Charlie”, mas nenhum me atende, pois ambos são incompletos para os meus anseios. Sim, sou absolutamente a favor da liberdade de expressão. Não, não sou a favor do desrespeito gratuito pela fé, valores, convicções e crenças de quem quer que seja.
E o Charlie Hebdo acha que pode debochar como bem entender. Só que não. Ânimos, orgulhos, vaidades, interesses, fanatismos, radicalismos, enfim, esta mistura gera tensão incontrolável. Com isso estou justificando os ataques? Óbvio que não. Procure e veja o tanto que o Charlie já desrespeitou o cristianismo e pesquise as reações. Protestos, artigos escritos, desprezo e só, nada de terrorismo. Só que então eles entenderam que dava para zoar do islamismo. Mas não deu.
Está é a linha de raciocínio e, lógico, não faltam opositores para dizer que o argumento que exige respeito, nada mais é que censura. Não é. Existem limites, códigos e regras para a sociedade plural tão exigida e proclamada nas mais variadas manifestações deste Brasil. Vou emprestar argumentos que devem ajudar na compreensão do que escrevo.
“Não devemos ser contra o humor, mas precisamos rever a ideia do que é engraçado. Qual a graça em humilhar o outro? Por que rir quando humilham alguém diferente de mim?” Carla Cristina Garcia.
“A piada não é ingênua. Ela tem como objetivo a ridicularização do outro e provoca um processo de maior discriminação na sociedade. É um mecanismo violento e sofisticado que parte de pessoas cultas, que tem consciência do que dizem... O gay quando está no armário não é motivo de piada. Mas as pessoas fazem piada quando ele se assume, porque buscam fazer com que ele volte a invisibilidade. Este é o mesmo objetivo das piadas racistas, sexistas, classistas e religiosas. ” Dagoberto José Fonseca.
Os pensamentos acima foram colhidos da matéria “Para especialistas, gays e negros sempre se ofenderam com as piadas do Didi”, publicada em 08/01/15 no uol. Entendeu? Todos os argumentos acima foram usados por especialistas para criticar as piadas do Didi em relação ao Mussum e dos Trapalhões em relação aos gays. Ora, argumentos são argumentos, devem valer para todos. Ou seja, por que cristãos podem ser zuados e esculhambados diariamente na história deste nosso Brasil? E por que estes mesmos argumentos, quando usados para pedir respeito aos cristãos, são taxados pelos “especialistas” como preconceituosos e nada a ver?
“Precisamos rever a ideia do que é engraçado...” E precisamos urgente. Já que o Renato Aragão entrou neste texto, continuemos com mais um exemplo dele. Num dos programas “Na Moral” do Pedro Bial, o Didi e um integrante do Porta dos Fundos discutiram sobre a filosofia do humor de cada um. Enquanto o Renato afirmou que não fazia piada com religião, pois achava ser um desrespeito, o outro afirmou o contrário ao dizer que não zombava das minorias mas fazia questão de zombar dos poderosos e, na visão dele, a igreja é muito poderosa e merece ser ridicularizada. Até o momento, no entanto, percebo que o humorista e sua trupe são bem inteligentes, ou parciais na decisão sobre quais grupos fazer piada, pois não caíram no risco de fazer chacota do Islamismo que, como sabemos, é uma força mundial, não tem nada de minoria, portanto faz parte do que ele classifica como “poderosos”. Mas...
Tô fora desta escolha midiática que tentam nos impor. Quero minimamente conseguir ser apenas eu. E só. E olhe lá! Ser quem somos, assumir nossas contradições, digerir dúvidas, superar medos, dominar ímpetos, vigiar a calma, exercitar a paciência, cultivar um pouco de amor, receber perdão, administrar ansiedades, enfim, navegar nas complexidades do eu já é uma tarefa ímpar, e agora querem ainda que sejamos ou não sejamos Charlie? Para. Menos.
Que o Charlie Hebdo siga seu destino. Que os radicais de todas as correntes sigam suas convicções. Que os puros de olhar, alma e coração sigam suas inspirações. Que os soldados sigam seus comandos. Que os jovens sigam seus sonhos. Que os velhos sigam suas sabedorias. Que eu siga minha vocação e chamado. E que todos nós, indistintamente, saibamos que cada escolha que fazemos tem uma consequência específica.
Que bom, não sou Charlie. Sou apenas o resultado da Graça que não se é possível explicar, apenas viver.
Paz!