Quando nos referimos aos Evangelhos ou demais livros e cartas do Novo Testamento, pensamos no cristianismo como uma nova religião, nascida do nada, a partir de Jesus. Isso não condiz com a verdade. Os próprios Evangelhos foram escritos bem depois da morte de Jesus. A base para o ensino da Igreja Primitiva sempre foi a Bíblia hebraica ou o que se tornou conhecido como Velho Testamento, unidos aos ensinos orais de Jesus que, mais tarde, foram escritos pelos discípulos.
A Bíblia hebraica sempre foi usada por Jesus em seus ensinamentos. Ele nunca a contradisse, ao contrário, deu-lhe a correta interpretação e lançou luz aos mandamentos. Esse foi um dos propósitos de seu ministério, o de “cumprir a Torá” que, de acordo com um hebraísmo do século I, significava dar-lhe a correta interpretação e nada tem a ver com cumprir ou não a Lei. Além disso, como rabino que era, usou não apenas os métodos rabínicos de ensino da época, mas utilizou-se de outros ensinos de rabinos que o precederam, aperfeiçoando-os, como fez com os ensinos de Hillel e Shamai que viveram cerca de um século antes.
Um bom exemplo foi seu sermão inusitado, após a ressurreição, aos dois discípulos que seguiam para Emaús. Ele fez uma longa exposição sobre o Filho do Homem, sua Paixão e ressurreição, com base apenas na Torá e nos Profetas, o que equivale ao Velho Testamento cristão. O fato de usar as Sagradas Escrituras hebraicas para se identificar como o Messias de Israel, inclusive após sua morte, mostra a importância que os cristãos deveriam dar a elas. Ele não apenas se identifica com elas, mas, segundo João, é Ele mesmo a Palavra viva de Deus.
Termos nada novos
Normalmente, a maioria dos termos diferentes ou que julgamos terem sido criados no Novo Testamento são retirados da Bíblia hebraica. Termos empregados por Yeshua nos Evangelhos raramente eram desconhecidos de sua audiência, mas de amplo conhecimento como, por exemplo, Malchut HaShamaim ou Reino dos Céus, até hoje empregado no judaísmo. Os termos “Grande Tribulação” ou “dores de parto” também não foram criados por Yeshua, mas são simplesmente menção aos livros dos Profetas como Isaías, Jeremias e Daniel.
Yeshua teria tido dificuldades em se comunicar com seu público se criasse termos do nada e não explicasse o que era. Não devemos confundir isso com o uso de parábolas, histórias que faziam uso de uma linguagem cifrada com o propósito de ensinar alguma lição. As parábolas também não eram uma invenção de Yeshua, mas uma prática comum de todo e qualquer rabino, independente da corrente dentro do judaísmo. Há milhares de parábolas na literatura rabínica e muitas delas se assemelham às contadas por Yeshua, sendo anteriores a Ele, o que mostra não somente que Ele as conhecia, mas também que lhe inspiraram a criar as suas próprias.
A armadura de Deus
Outro exemplo sobre imagens e símbolos, dentro do contexto judaico em que foi escrito o Novo Testamento, está na “armadura de Deus”, mencionada por Paulo em 1Tessalonicences 5:8 e Efésios 6:10-18, expressão tão conhecida entre os cristãos. Se alguém entrar em uma loja evangélica com artigos infantis que tenha a “armadura de Deus” para crianças, encontrará uma réplica de brinquedo da armadura romana do século I. E se perguntar a qualquer cristão a respeito dessa armadura mencionada por Paulo, ele dirá que se trata da mesma armadura romana.
No entanto, assim como Yeshua, Paulo não sacava essas imagens do nada, mas da Bíblia hebraica. A couraça da justiça e o capacete da salvação são uma menção direta de Isaías 59:17, onde o profeta se refere à armadura judaica do século VIII antes de Cristo, época em que escreveu sobre isso. Essa é a armadura vestida por Deus, segundo Isaías, e a mesma usada por Paulo para nos inspirar espiritualmente a vesti-la. Nada tem a ver com a armadura romana criada séculos depois.
Outro termo empregado por Paulo muito conhecido diz respeito à Noiva de Cristo. O termo noiva também não foi criado por ele, mas é uma referência ao livro de Cântico dos Cânticos, em que a Noiva é Israel e o Noivo, o Messias — um conceito que existe no judaísmo há pelo menos cerca de mil anos antes de Cristo, quando Salomão escreveu o livro.
Os exemplos citados acima são apenas alguns e mostram como os autores do Novo Testamento recorriam à Bíblia hebraica para elaborar seus escritos. Afinal, eram judeus que viviam a cultura da Torá e dos Profetas, dentro do contexto histórico e sociorreligioso de suas origens. Isso por si só mostra a importância de se conhecer o que chamamos de Velho Testamento, tão ignorado por muitos atualmente. É impossível compreender e interpretar o Novo Testamento sem conhecer toda a Torá, os livros históricos e os Profetas.
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br
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